Mundo Interno e Autocontrole

Quando se afirma que um sentimento é uma ocorrência interna ao organismo, há duas possibilidades interpretativas. Na primeira delas, o sentimento é visto como um conjunto de condições anátomo-fisiológicas, ocorrências corporais particulares, sob a pele do organismo. Essa posição corresponde a uma espécie
de reducionismo organicista. O que antes era postulado como fenômeno de natureza “psicológica”, apresenta-se agora como um fenômeno cuja explicação prescinde da referência a algo mais do que as ciências biológicas podem estabelecer. Como resultado, problemas relativos a essa interioridade serão objeto de uma intervenção por profissionais das ciências biológicas, não por psicólogos. Que esse tipo de reducionismo circula na cultura deve ser evidente para todos. Com uma freqüência cada vez maior divulgam-se “informações” acerca da “natureza” fisio-química de “transtornos”, emoções etc… Divulgam-se, correspondentemente, as substâncias capazes de garantir a solução de problemas nesse domínio.

Uma ciência do comportamento inicia com a suposição de que o organismo que se comporta tem uma estrutura anátomo-fisiológica que é condição para a relação comportamental; uma estrutura, portanto, cuja especificação contribui para uma compreensão mais abrangente do fenômeno comportamental. Para uma ciência do comportamento, porém, aquela estrutura não define a relação comportamental propriamente dita.

Uma segunda versão de internalismo refuta o reducionismo organicista e preserva a idéia de que há um fenômeno interno ao organismo, mas que não se confunde com suas ocorrências anátomo-fisiológicas. Nesse caso, a ocorrência interna não está dotada da materialidade dos fenômenos fisiológicos, e é exatamente sua
natureza diferenciada, “mental” ou “psíquica”, que a torna objeto de uma ciência psicológica. O mentalismo, desse ponto de vista, consiste em uma tentativa de preservar um internalismo na análise dos fenômenos psicológicos, sem resvalar para o reducionismo organicista.

A análise do comportamento tem formulado críticas sistemáticas ao mentalismo na psicologia, mas é importante observar que a postura mentalista é antecedida pela suposição de que fenômenos psicológicos são fenômenos do ou no indivíduo, internos a ele. É apenas quando se aborda, por exemplo, o pensar como uma ocorrência do/no indivíduo, que se é levado a discutir se tem uma natureza material ou imaterial, se se confunde com processos neurofisiológicos, ou se pertence a uma outra dimensão da exist ênc i a humana . Em qua l que r c a s o , há o distanciamento com respeito a uma perspectiva relacional de análise (cf. Tourinho, 1999a).

As origens do dualismo mente-corpo são encontradas na filosofia platônica (cf. Massimi,1986). Platão desqualificava o corpo como a origem do conhecimento seguro. Mas também não admitia que os processos de interlocução, os embates verbais entre indivíduos, conduziam à verdade. Vivendo em um período de decadência da democracia grega, quando os debates públicos serviam a interesses de poucos, em prejuízo de homens honestos, Platão foi levado a crer que apenas atributos ou faculdades especiais de indivíduos particulares possibilitavam a eles transcender o mundo das aparências e das ilusões em direção à verdade. Localizados no próprio indivíduo os recursos cognoscitivos, e desqualificado seu corpo para tal, restava supor a existência de uma dimensão imaterial do homem como aquela por meio da qual a verdade poderia ser alcançada. Muito freqüentemente questiona-se a necessidade platônica de recorrer à categoria da “alma” para explicar o conhecimento humano, assim como sua versão moderna no dualismo cartesiano. Todavia, dado o fato de que nenhuma condição anátomo-fisiológica explica nossos enunciados sobre o mundo, a idéia de que enunciados verdadeiros são alcançados por meio de ocorrências do próprio indivíduo exigirá a suposição da existência de um outro mundo. O mentalismo vem a ser a alternativa possível ao reducionismo, quando prevalecem visões individualistas e internalistas acerca do homem. O individualismo e o internalismo é que precisam ser questionados. 

É bastante conhecida a afirmação de Skinner (1945) de que eventos privados, tanto quanto eventos públicos, são dotados de dimensões físicas. Essa afirmação cumpre uma função de evitar o dualismo metafísico em uma ciência do comportamento, mas não deveria ser tomada como uma definição da natureza dos fenômenos tidos, em outros contextos teóricos, como “subjetivos”. Em outras palavras, não é porque sentimentos,
pensamentos, emoções, cognições etc. têm dimensões físicas que a referência a essa dimensão tem valor de descrição daqueles eventos. O debate sobre uma natureza física ou mental dos sentimentos mantém-nos no terreno equivocado do internalismo. Enquanto fenômenos psicológicos , ou comportamentais, sentimentos, emoções, pensamentos, cognições etc. não são exatamente fenômenos físicos , nem mentais ; consituem-se em relações, e relações não são o tipo de fenômeno com respeito aos quais faz sentido prover uma definição em termos de dimensões físicas ou mentais (equívocos desse tipo exemplificam problemas assinalados por Ryle, 1949/1984, na discussão dos usos dos conceitos psicológicos).

Mesmo quando se olha apenas para a resposta do organismo, trata-se da resposta do organismo como um todo. “É o organismo como um todo que se comporta” (Skinner, 1975, p.44); é o “comportamento do organismo como um todo” (Skinner, 1990 , p.1206) que resulta de processos de variação e seleção. Voltando à relação comportamental, Morris (1988), ao apresentar o contextualismo como visão de mundo
da análise do comportamento, sintetiza a definição de Skinner afirmando que

o comportamento é uma interrelação dinâmica, sinergética e ativa, não uma coisa, na qual a resposta é apenas um componente. A unidade de comportamento inclui não apenas respostas, mas principalmente as funções daquelas respostas, tanto quanto suas funções de estímulos interrelacionadas em um contexto contemporâneo e histórico (p. 300).

Em uma discussão baseada no interbehaviorismo de Kantor, que desenvolveu extensa argumentação contra o reducionismo fisiológico na psicologia (cf. Kantor, 1922, 1923, 1947; Tourinho, 2004), Hayes (1994) aborda o mesmo caráter relacional do fenômeno psicológico salientando que 

de uma perspectiva psicológica, partes do organismo, consideradas separadamente do todo, não participam de eventos psicológicos. Em vez disso, elas participam de eventos isolados por outras ciências, isto é a biologia e a fisiologia. Em outras palavras, o baço, o fígado o estômago e os pulmões não participam de atos psicológicos – nem o cérebro. Não são os olhos que vêem, os ouvidos que ouvem, as pernas que caminham, ou o cérebro que pensa – é o organismo como um todo que se engaja nesses atos (p.151).

Em suma, no que concerne à ciência psicológica, o mundo interno possível consiste apenas de um aparato anátomo-fisiológico que é condição para relações comportamentais e que até pode adquirir certas funções de estímulo,mas que não define nem mesmo a resposta do organismo , muito menos as relações comportamentais. No entanto, se a noção de interioridade não é consistente aos olhos de uma
ciência psicológica, ainda é necessário explicar o que a torna persuasiva ao leigo.


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